14/05/13 - A justiça do perdão

 
A aproximação entre “justiça” e “compensação por danos sofridos” povoa a cultura humana há milhares de anos. Dizem que nasceu da experiência ancestral de troca de bens necessários à vida, e de busca de regras que conduzissem ao respeito da igualdade e reciprocidade dos valores envolvidos na troca. Ser justo, neste caso, consistiria em saber, por exemplo, que o sal vale mais que o trigo em determinada região, e comercializar um quilo de sal contra três de trigo.
Estas noções de proporção e compensação, pouco a pouco, se tornariam reguladoras também das relações humanas, sobretudo, quando estas tendessem ao conflito. Assim, pensemos no caso em que uma pessoa lesada por outra fosse tomada pelo desejo de vingar-se. Como se estabeleceram medidas para canalizar a vingança e evitar que se transformasse numa escalada de destruição? Redigiram-se códigos que limitavam a violência humana e geriam os conflitos entre as partes: – “olho por olho, dente por dente!”, disseram os sábios ancestrais. Recordemos, no entanto, que o “dente” do rei valia bem mais que o do súdito e exigia, se ferido, maior compensação. Aliás, as diferenças sociais perpetuadas, de geração em geração, inseriram na ideia de justiça social a noção de distribuição proporcional de tarefas entre estratos relativamente rígidos. E ainda hoje, há “reis” ou “rainhas”, “guerreiros”, “sacerdotes”, “artesãos” e “escravos”, mesmo que seus nomes e funções tenham se modificado.
Porém, interessa-me neste ensaio perceber, principalmente, que a naturalidade com que julgamos ser necessário compensar ofensas sofridas (e punir quem nos ofende) talvez se enraíze nesta compreensão da justiça acima esboçada. Sem dúvida, trata-se de um modo de organizar o mundo das relações humanas e dotá-lo de ordem razoável. Mas algo escapa desta ordenação e exige outro olhar. Não basta seguir o antigo ímpeto e dizer: –  “Alguém deve pagar por isto!”
E se a dívida não pudesse ser paga, nem mesmo ao preço de uma vida? E se a injustiça atingisse não um bem material que me seja caro, mas meu sentimento do mundo? Refiro-me ao sentimento que colore tudo que me acontece, define minhas opiniões e reações no cotidiano e interfere, enfim, em todas as minhas decisões. Algo infinito e, neste sentido, desproporcional.
Aprendi em minha escuta dos dramas humanos, por exemplo, que pais cujos filhos foram assassinados não se satisfazem nem mesmo ao ver o algoz receber a mesma pena que impôs ao inocente. E a experiência da vida mostra que as feridas das relações cotidianas não se fecham, quando tratadas por meio de pequenas vinganças em reação. A justiça proporcional, que exige compensações por danos sofridos, mostra-se insuficiente para lidar com o sentimento.
Precisamos de outra justiça. Parece razoável deter e punir quem destrói e ameaça a vida humana. Mas creio que outro passo precisa ser dado, para equilibrar a convivência social. Defendo que a intuição do coração ferido, em mim e em outro, intuição cujo nome é “compaixão, conduza-nos a outra forma de justiça: a justiça do perdão. Algo deve ser feito para vencer a violência do mundo e romper o círculo de imitação e de guerra, que há séculos nos conduz da violência à vingança, mesmo quando esta, no melhor dos casos, encontre-se limitada pela justiça de proporção. A justiça do perdão exige que a pessoa violenta seja desmascarada e corrigida. Mas não se contenta em vingar-se. Ou melhor, não busca vingança ao impor a pena justa a quem transgrediu a ordem humana. Em todos os casos em que se revele possível, deseja trazer de volta à vida e às relações aquele que, outrora, também foi vítima, antes de converter-se em agressor.


Por: Álvaro Mendonça Pimentel

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