“Não temos o direito de ser sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores indiferentes”. (Baseado em Isaías 56,10).
Caro agente de Pastoral Carcerária,
No ano de 2012 e no início de 2013, a nossa Pastoral, a nossa fé e o nosso trabalho foram colocados à prova em vários momentos.
O nosso trabalho tem provocado aversão, revolta, ofensas e até mesmo prisão dos nossos agentes de pastoral carcerária.
As denúncias das irregularidades, das violências, a luta contra o encarceramento em massa, a campanha pelo veto à ampliação do porte de armas, o combate à privatização do sistema prisional, as denúncias de torturas e maus tratos no interior das prisões, têm gerado uma série de reações, muitas vezes orquestradas, de parte dos funcionários do Estado que tentam intimidar, afastar e condenar toda ação profética dos nossos agentes de pastoral carcerária.
Não temos o direto de ser sentinelas adormecidas. Ao ingressar nos presídios e cadeias e ver, ouvir e sentir as injustiças e violações de direitos que ali são cometidas, não temos o direito de nos emudecer. Não podemos ser cães mudos; silenciar perante tanta injustiça.
As prisões, neste ano que passou, se multiplicaram e o ritmo do aprisionamento de homens e mulheres, da nossa juventude pobre, de baixa escolaridade, desempregada, quando não morta antes de chegar às unidades prisionais, só tem aumentado. A superlotação assola presídios de todos os estados do país. As condições de sobrevivência tornam-se cada vez mais difíceis. Onde deveriam estar contidos oito presos, hoje facilmente se encontram, em vários presídios do Brasil, 40 a 50 pessoas detidas numa cela. Isto acontece sem mudança no quadro de servidores, de técnicos, de médicos, de oportunidade de trabalho e de estudos, de assistência jurídica, e do aumento do material básico e, em muitos lugares, sem nenhuma assistência a saúde e sem alimentação suficiente: a quantidade é a mesma para a capacidade inicialmente estabelecida para a unidade e na maioria das vezes de má qualidade.
Somada a esse verdadeiro massacre à população carcerária, por meio da precarização das unidades prisionais, está a política de privatização do sistema prisional, vendida como solução mágica. Por trás dessa ilusão, no entanto, se escondem os objetivos de seguir com o encarceramento seletivo e em massa e de auferir altos lucros por meio das centenas de milhares de pessoas pobres que povoam e povoarão o sistema prisional. Assustadoramente, as cadeias se tornam negócio e as pessoas presas passam a ser tratadas como mercadorias. Objeto de venda e de lucro.
Não condiz com os objetivos da Pastoral Carcerária os seus agentes serem sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores(as) indiferentes. As condenações e ofensas recebidas reforçam o compromisso de sermos sentinelas despertas, cães ruidosos, pastores comprometidos. O que não queremos é silenciar quando é preciso falar.
Fazer pastoral carcerária é realizar o trabalho do Pastor, Jesus Cristo, o Bom Pastor, junto às ovelhas encarceradas, as pessoas presas.
O Bom Pastor é aquele que marca presença. Vive em função do rebanho. Interesses privados, interesses econômicos e interesses politiqueiros não impedirão o agente de pastoral carcerária de dar o sinal quando a justiça estiver comprometida, quando o respeito a pessoa for abandonado.
Não podemos nos envolver nos interesses de nenhum governo ou instituição que trabalhe para o encarceramento dos nossos irmãos e irmãs, sem direito ao exercício da cidadania. Excluídos dos recursos sociais e impedidos de uma vida digna, são criminalizados em massa, por delitos cometidos, muito aquém dos delitos cometidos pelos seus algozes: governantes, juízes, legisladores.
“Aprisionam a verdade na injustiça” (Rm 1,18): permitir que estas pessoas sejam, ainda, reduzidas a mera mercadoria, objeto de comércio com a indústria privada, na terceirização dos presídios, e não se indignar, se calar, ficar indiferentes, isto não é permitido ao cristão, aos agentes de pastoral carcerária, pois os desprezíveis, os humilhados, os subjugados, os abandonados deste mundo são os eleitos de Deus; só para eles existem as Bem-aventuranças.
O profeta é aquele que anuncia e denuncia. Anuncia aquilo para o quê o ser humano foi essencialmente criado e denuncia os esquemas que atentam contra a sua vida. Um Profeta é alguém que ilumina: que traz esperança e anima as pessoas.
O que não podemos esquecer é que a profecia parte da dor do que o profeta vê, experimenta e sente. E que a profecia sempre provoca reações. É necessário, também, aprofundarmos a nossa mística para crescemos na missão de profetas, pois o místico prova a sua autenticidade pela persistência que passa pela cruz. É assim que ele se impõe e é ouvido.
O profeta não procura nunca impor a si mesmo, mas é pela doação, com amor ao compromisso assumido, que será verificada e confirmada a autenticidade da sua mensagem. É um trabalho desafiador que necessita ser alimentado e reforçado pela leitura e meditação da Palavra de Deus e pelo contato direto e constante dos irmãos e irmãs a nos confiadas, por Deus, para sermos os seus evangelizadores e as sentinelas dos seus direitos.
Ressalto aqui as palavras que o Papa Paulo VI dirigiu ao nosso saudoso profeta brasileiro, Dom Helder Câmara, mas que também podemos acolher como palavras dirigidas a nós, agentes de pastoral carcerária: “Continue! Continue! Você tem uma missão a cumprir: pregar a justiça e o amor, como caminho para a PAZ.”[1]
Meus Irmãos e Irmãs, agentes de pastoral Carcerária, não desanimem, não desistam da missão, da cruz a nós confiada por Deus! Carreguemo-la juntos! Tenho certeza de que pesa menos que a dor e o sofrimento que os nossos irmãos e irmãs encarceradas suportam.
Complemento este texto com o relato de uma visita do Bispo Dom Helder Câmara ao Presidio.
“VISITA A CASA DE DETENÇÃO EM 9 de Abril de 1967[2].
Dom Helder reuniu todos os 800 detentos no pátio para assistirem uma missa de páscoa. Estavam presentes, acompanhando Dom Helder, o governador do Estado de Pernambuco, o presidente do Tribunal de Justiça, o secretário de segurança pública o diretor geral da penitenciária. Todas estas autoridades ficaram constrangidas ou irritadas, quando Dom Helder lembrou que aquele presídio havia sido construído para comportar 120 pessoas. “Tinha se transformado numa masmorra desumana com 800 presos, uma vergonha para qualquer governo.”…Terminada a pregação, Dom Helder começou a cumprimentar os presos que lhe estendiam as mãos. Foi caminhando entre eles até chegar ao histórico militante comunista Gregório Bezerra, que do palanque havia percebido no meio da multidão. Os dois não se conheciam pessoalmente, mas Dom Helder ficara chocado ao saber das humilhações que Gregório sofrera ao ser preso, logo depois do golpe militar, conduzido pelas ruas de Recife na carroceria de um caminhão, pés e mãos algemados e pescoço amarrado.
Preso no quartel Gregório seria cruelmente torturado com requintes de sadismo pelo próprio comandante daquela unidade do exército, coronel Villoc, que ainda promoveria um novo desfile pelas ruas com o prisioneiro todo ensanguentado, acoitando-o publicamente e convidando os transeuntes a linchá-lo. Estes acontecimentos foram narrados pelo próprio Gregório Bezerra em suas memórias: “Quando D. Helder terminou a solenidade religiosa, desceu do palanque e começou a atravessar a multidão, andando na direção em que eu me achava. Supus que viesse cumprimentar algumas personalidades que se encontravam perto de mim e assim procurei dar-lhe passagem. Ele parou bem na minha frente e disse: Gregório, meu amigo, eu o estava vendo de longe com a sua cabeça branca e vim cumprimentá-lo. Como vai a sua saúde?
Eu também estava vendo e ouvindo a sua pregação e aproveito para agradecer em nome de meus companheiros e em meu nome pessoal, de todo o coração, os seus pronunciamentos humanitários em defesa dos presos políticos torturados e assassinados nas prisões da ditadura militar terrorista que assaltou o poder em 1964. Nós os prisioneiros políticos jamais esqueceremos a sua voz de protesto contra os crimes praticados pelos militares. Muita saúde e longa vida é o que lhe desejamos de todo o coração. Foi o que pude dizer, surpreendido e emocionado pelo honroso cumprimento.”
O encontro também ficou marcado na memória do arcebispo: “ Em certo momento descobri no meio dos presos, cabeça branca, Gregório Bezerra. Fui direto abraçá-lo. Era um pagamento atrasado pelos açoites públicos que ele recebeu, dias antes da minha chegada `a Recife”. Chorou de emoção o velho forte e me disse : “Se eu tivesse sido solto, minha ALEGRIA não seria muito maior do que a de receber seu abraço, bom pastor.”
Fraternalmente,
Pe. Valdir João Silveira
Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária – CNBB.
[2]http://www.encontrocomasabedoria.com.br/roteiros/dom_helder_camara.pdf
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